A operação é a mais letal do Rio de Janeiro desde junho de 2007, que deixou 19 mortos no Complexo do Alemão
Nesta quinta-feira (6), 25 pessoas morreram em uma operação policial no Jacarezinho, zona norte do Rio. A ação durou pouco mais de sete horas e é a mais letal do estado até hoje. A Polícia Civil informou que, entre os óbitos, está o policial identificado como André Leonardo de Mello Farias. As outras 24 vítimas foram declaradas criminosas, apesar da polícia não ter divulgado suas identidades.
Em junho de 2020, uma liminar imposta pelo Supremo Tribunal Federal ordenou que as operações policiais fossem restritas somente a casos “absolutamente excepcionais”, devido à pandemia. Entretanto, devem ser comunicadas previamente ao Ministério Público para que, assim, sejam acompanhadas pelo órgão.
"Decisão do STF não impede a polícia de fazer o dever de casa. Ela coloca protocolos e a Polícia Civil cumpre todos", disse o delegado. "Não sei se as grandes operações dão resultado. O que eu sei é que a falta de operação dá um péssimo resultado", acrescentou.
Nas redes sociais, moradores da comunidade denunciaram a violência policial, alegando ter ocorrido execuções, invasões e agressões. No entanto, o delegado Ronaldo Oliveira, na coletiva de imprensa da Polícia Civil, nega a afirmação. "Para deixar bem claro: quem não reagiu, foi preso. Ou foi preso ou fugiu", disse.
O Ministério Público se pronunciou, em nota, que foi comunicado "logo após o início da operação", às 9h da manhã. Isto é, três horas depois, visto que a ação começou às 6h. O órgão afirmou ainda que está investigando o caso e que recebeu ocorrências de abuso policial em seu plantão de atendimento.
Denúncias
“Para fazer uma operação dessa, há muito planejamento. E seguimos muitos protocolos”, declarou Ronaldo Oliveira. Ainda assim, inúmeros casos de irregularidades, violência e abuso de poder foram relatados pelos cidadãos.
Um morador da favela apontou a falta de respeito por parte dos policiais após duas pessoas terem sido mortas na casa onde ele mora com a avó. “Respeito com os moradores, nunca tem. Isso é uma população, mas acho que eles pensam que estão no Iraque", disse ele.
Outros residentes também acusaram os agentes de confiscarem celulares e de os atacarem fisicamente. “Estão pegando telefone e agredindo morador”, relatou outra pessoa que não quis ser identificada, em entrevista ao RJ1.
A deputada federal Talíria Petrone (PSOL-RJ) afirmou que foram tiradas fotos de um dos mortos na operação em uma posição humilhante. Segundo relatos, um homem negro teve um dedo colocado em sua boca.
Djeff Amadeus, um dos advogados responsáveis pela sustentação do ADPF 635 no Supremo Tribunal Federal, fez a mesma denúncia.
Um vídeo de moradores acusando policiais de não aceitarem a redenção dos criminosos está em alta nas redes sociais. Segundo a filmagem, uma moradora afirma que os profissionais optam pela execução.
Críticas de autoridades
A estratégia hostil do combate ao tráfico de drogas pela polícia do Rio de Janeiro é alvo de críticas de autoridades, uma vez que a violência só se faz presente em comunidades. A maior apreensão de fuzis da história do Rio foi realizada no Méier, também na zona norte. Um total de 117 fuzis M-16 foram apreendidos sem a necessidade do uso de armas de fogo ou execuções.
"Infelizmente, a polícia no Rio faz ciclicamente essas operações que causam muita insegurança e vítimas [...]. Acho que a única tentativa de, pelo menos, diminuir o controle do tráfico foram as UPPs, antes e depois disso as operações só geram insegurança e raramente conseguem um objetivo estratégico. Quando a polícia se retira, tudo volta ao normal. Os mortos são substituídos", aponta o sociólogo e professor Ignácio Cano, do Laboratório de Análise da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (LAV-UERJ).
A deputada estadual Dani Monteiro (PSOL), presidente da Comissão de Direitos Humanos da Alerj, aponta a falta de transparência da polícia em relação a como foi conduzida a operação e à identidade dos mortos.
"Não está clara a ligação das 24 vítimas com a operação, que até então tinha 21 suspeitos (a 25ª vítima é um policial civil). É óbvio que a morte dessas pessoas não se justificaria mesmo com um crime, mas é ainda mais chocante que operações saiam com 24 mortos e não tenhamos um relato preciso da polícia de qual era seu objetivo e como ele foi alcançado. Se essa operação tivesse vislumbrado esses 21 suspeitos, já sairíamos do processo com identificação dessas pessoas. Várias seguem sem identificação", ressaltou a deputada.
O porta-voz do alto comissariado da ONU, Rupert Colville, em uma coletiva em Genebra, disse estar “profundamente perturbado” com a ação de ontem. Segundo ele, esta foi “desnecessária, exagerada e letal”. Coville também afirmou que o acontecimento deixou claro que o Poder Judiciário brasileiro não está conseguindo coibir os atos abusivos da polícia. A ONU também cobrou da justiça brasileira uma “investigação independente, completa e imparcial, de acordo com padrões internacionais”
Crescendo em meio ao terror
A Defensoria Pública foi à comunidade logo após os momentos de terror. Durante sua passagem, visitou uma residência na qual o quarto de uma criança de nove anos estava coberto de sangue. A família contou à Defensoria que um homem já ferido invadiu a casa e foi morto no quarto da criança, que viu toda a cena. O pai narrou os momentos de horror vividos em sua casa ao The Intercept Brasil.
“Entrou baleado no dedão do pé, mas ele não estava armado, não vi ele armado. Aí foi quando eles invadiram a casa atrás dele. Quando entraram, só mandaram eu sair, “morador sair”. Quando eu fui sair com a minha filha, eu ainda estava na sala e eles executaram o rapaz dentro do quarto da minha filha”, disse ele. “ Aí, mandou descer, os outros empurraram a gente. Eu desci pra casa da vizinha debaixo, mandaram eu ficar lá dentro, que não podia voltar pra casa, que tinha acho executado o rapaz”.
Especialistas ressaltam as consequências psicológicas nos menores que presenciam situações traumáticas como essas de forma recorrente. Problemas com medo, insônia, síndrome do pânico, ansiedade, TEPT (Transtorno de Estresse Pós-Traumático) e até distúrbios de aprendizagem são alguns efeitos causados pela violência letal do Rio de Janeiro.
“As crianças estão à mercê de tudo isso que elas estão vivenciando, não só na prática, no tiroteio diário em cada bairro, mas também através da mídia e das repercussões”, disse Evelyn Eisenstein, especialista em saúde de crianças e adolescentes da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e da Sociedade Internacional para a Prevenção de Abuso e Negligência contra Crianças (Ispcan, na sigla em inglês).
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