Em entrevista com Lela Brandão, desenhamos como esta relação está diretamente ligada
A moda está presente no cotidiano social, determinando e explicitando comportamentos e padrões culturais de um contexto histórico e geográfico. A partir dessa ótica, é possível desenhar as relações sociais em um reflexo da caracterização da indumentária e da forma de expressão.
O ponto é: essa relação permeia o nosso imaginário coletivo há anos. E foi reforçando a forma como se lê a relação com o próprio corpo e autoestima. No ocidente, a moda está ligada às relações de poder e opressão do corpo feminino, com acessórios que representavam as divisões de classes e raças.
Hoje, entende-se que a moda é uma linguagem e que é expressa materialmente por meio das roupas, que, por sua vez, são capazes de construir noções identitárias. E traçando essa relação, o movimento de emancipação de mulheres passa pela relação com as roupas.
Pensando nisso, o Femme News conversou com a Lela Brandão, artista visual e criadora da marca Lela Brandão Co., para refletir sobre a opressão histórica expressa nas roupas e, também, a importância de se repensar nesses aspectos.
Femme News: Como as peças de roupas podem servir de ferramenta de opressão do corpo da mulher?
Lela Brandão: É interessante observar as iniciativas que tentam propor que a moda se dissocie da opressão feminina, que pode acontecer em diversos processos da criação das roupas, mas aqui vamos conversar especificamente sobre as peças de roupa, já materializadas. Vemos, ao longo da história, a clara relação do surgimento e disseminação de algumas formas de vestir com o controle desejado sobre o corpo feminino. De início, as primeiras marcas nem pensavam em produzir calças pra mulheres (marcas, essas, que se importavam em produzir apenas pra mulheres brancas da alta classe social). Com a primeira guerra mundial, falando mais do cenário europeu, veio a defasagem de operadores para fábricas e a inserção das mulheres (brancas, já que as negras já eram forçadas a trabalhar há muito tempo) no mercado de trabalho, que trouxe duas coisas: a necessidade de produzir roupas para mulheres que permitissem os movimentos dentro das fábricas, e o poder de compra (reduzido, claro) feminino, que fez com que a indústria se adaptasse.
Então, só depois de 1920 é que a moda pensou que as nossas roupas precisavam permitir que a gente se movimentasse pra trabalhar. E pensar nessa necessidade nem de longe significou um compromisso em pensar nas necessidades do corpo das mulheres. Vemos como parte do vestuário feminino peças que limitam, apertam, incomodam, impossibilitam nosso corpo de SER. Sapatos de salto alto e bico fino que requerem muita prática para simplesmente andar — que dirá correr em situações necessárias! Saias lápis e vestidos justos e sem maleabilidade e nos impedem de andar. Corselets, que nascem com o objetivo de afinar a cintura a qualquer custo — mesmo que isso signifique desmaiar com a falta de ar e não conseguir se alimentar. Esses são alguns exemplos de materialização da opressão feminina em peças de roupa. Um exemplo mais prático e pessoal: eu lutei contra distúrbios alimentares na minha adolescência, e usava minhas peças de roupa pra competir comigo mesma. "Vou emagrecer até caber nessa calça", eu dizia, pra calças que não foram pensadas para mim. Isso me levou a um ciclo infinito de autodepreciação, competição e culpa que só se encerrou quando adotei uma outra forma de me vestir.
Femme News: O que você enxerga que pode ser uma nova forma de se relacionar com as roupas?
Lela Brandão: Não sei se podemos dizer que é uma nova forma, mas com certeza é a forma que eu acredito. Existem vários requisitos para uma relação mais respeitosa com o seu corpo partindo das roupas, vou contar o que é essencial para mim.
Para mim, priorizar peças que foram pensadas pra serem confortáveis é uma garantia de que a peça foi pensada e testada em um corpo. É importante também observar se a peça foi pensada para um corpo "padrão" ou pra um corpo real, se a marca tem uma grade de tamanhos compatível com a realidade e modelos e clientes que demonstrem o caimento das peças em diversos corpos. Peças que se adaptem ao corpo e comportem as alterações de tamanho que nossos corpos sofrem em nossos ciclos menstruais e nossas diferentes fases da vida. E o mais importante: priorizar peças que permitam que eu me movimente.
Parece que eu só uso roupa de ginástica né? Mas não é assim. É possível pensar todo tipo de roupa de forma confortável e que respeite nosso corpo. É o que estamos fazendo na Lela Brandão Co.
Femme News: Qual a importância de adotar esses outros modelos de enxergar a moda, como é o caso da sua marca?
Lela Brandão: Eu acredito que a importância, ao menos na nossa marca, é que exista a possibilidade de escolha, que as mulheres possam escolher comprar em marcas que pensam nessas questões. A importância de que, ao adquirir uma peça, poder ter a segurança de que ela foi pensada para respeitar os nossos corpos, ouvindo as necessidades de mulheres com corpos diversos pra chegar em um resultado final mais democrático possível. A gente acredita que uma mulher confortável em si é uma revolução, esse é nosso lema e é ele que permeia a criação de absolutamente tudo dentro da nossa marca.
Que matéria importante e que nos leva a perceber que a opressão ao corpo da mulher está em tudo, até onde parece não estar. Amei demais!
Eu amei demais essa matéria!!! É doido demais pensar que tudo pra mulher é mais difícil e como a indústria da moda nos oprime também, muito bom encontrar marcas como a da Lela!